Marlene Monteiro Freitas e "NÔT": perplexidade e fascínio

Rostos atónitos multiplicavam-se na plateia da Cour d’Honneur do Palácio dos Papas, em Avignon, França. Alguns não resistiam a sair a meio do espetáculo, enfurecidos. Outros ficariam tempo suficiente para vaiar assim que as luzes se apagaram. Mas todos seriam rapidamente silenciados pelos aplausos.
As reações mistas do público a NÔT, espetáculo da cabo-verdiana Marlene Monteiro Freitas, marcaram a abertura do importante festival de teatro francês, em julho. Naquele palco monumental, reservado a figuras maiores do teatro mundial, Avignon abriu-se àquilo que não se explica: à estranheza, à violência poética, à radicalidade de corpos em luta. A escolha do diretor do certame, Tiago Rodrigues, para abrir com NÔT não foi inocente.
A coreógrafa, consagrada na Bienal de Dança de Veneza em 2018 como “um dos melhores talentos da sua geração”, não leu nenhuma crítica ao espetáculo, como é habitual. “Sei a natureza das críticas, mas não as li. Raramente leio”, admite ao Observador. Há um fascínio no que é indizível na dança de Marlene Monteiro Freitas e isso reflete-se também no modo como fala: em poucas palavras, baixinho, com pausas longas que parecem dar corpo ao silêncio. Essa mesma contenção, transformada em linguagem cénica, alimenta a sua visão singular na dança contemporânea, capaz de converter o palco num espaço de encantamento e assombro — um que agora chega aos palcos portugueses, primeiro na Culturgest, em Lisboa, entre os dias 11 e 14 de setembro, e depois no Teatro Municipal do Porto — Rivoli, na Invicta, a 19 e 20 de setembro.

▲ O livro "As Mil e Uma Noites" foi o ponto de partida da coreógrafa para "NÔT", que significa “noite” em crioulo cabo-verdiano
Christophe Raynaud de Lage
NÔT — “noite” em crioulo cabo-verdiano — é inspirada no cânone absoluto da literatura em árabe, As Mil e Uma Noites. O trabalho parte da ideia de Xerazade, que conta histórias para salvar a vida, transformando a imaginação em arma de sobrevivência. Só que a coreógrafa há muito radicada em Portugal não é uma contadora de histórias convencional. O espetáculo surge mais como uma colagem livre de imagens, com referências diretas ao clássico literário apenas pontuais.
Procurando decifrar o seu processo criativo, Marlene Monteiro Freitas explica ao Observador que NÔT nasce do diálogo entre duas ideias: a das Mil e Uma Noites e a da própria noite. Não é só a obra literária que a inspira, mas também essa zona ambígua em que o sono e o sonho se confundem, em que as histórias se inventam e se vivem. “As histórias estão contadas durante a noite e a estrutura da obra é pautada por uma suspensão, em que se sobrepõem, imagens dentro de outras imagens. Histórias que nós próprios construímos, que têm uma natureza parecida com a inventividade da Xerazade.”
Pais, filhos e fantasmas: as vozes da família ecoam nos palcos de Avignon
No palco, os corpos ganham tensão de marionetas, num jogo entre absoluta rigidez e momentos de libertação. Há uma estética clownesca, com máscaras e um humor desconcertante, como quando um intérprete desce até à plateia com um penico, fingindo urinar no colo do público. Cenas que provocam desconforto, mas que, em Avignon, já não chegam propriamente a escandalizar dado o histórico do festival anual.

▲ Em palco estão oito intérpretes: Ben Green, Henri “Cookie” Lesguillier, Joãozinho da Costa, Mariana Tembe, Marie Albert, Miguel Filipe, Rui Paixão e Tomás Moital
Christophe Raynaud de Lage
“Tudo o que ponho em cena são coisas que me fazem rir, ou que me emocionam… É muito difícil o meu gosto estar alinhado com o gosto de mil e tal pessoas”, diz, com um sorriso. “Não é para colocar as pessoas em desconforto, mas porque eu gosto.”
Esse afastamento em relação às convenções é algo que a própria reconhece: “Tem sido recorrente no meu percurso apoiar-me em determinadas obras e, depois, a tradução que faço nunca está alinhada com as expectativas (risos).” Foi assim em Bacantes – Prelúdio para uma Purga (2017), — “as pessoas não viam a tragédia grega” — ou em Lulu (2023), a ópera incompleta de Alban Berg, onde “as pessoas não viam a Lulu”. Perguntamos-lhe se não será esse o papel da arte, desafiar convenções, o esperado. “Talvez”, responde simplesmente. “Eu faço isso porque não sei fazer de outra maneira. Não é um esforço para o fazer”.
Num novo livro sobre a obra coreográfica de Monteiro Freitas, a investigadora, curadora e professora Alexandra Balona mergulha na forma como Monteiro Freitas tem construído coreografias que abrem “espaços de estranheza e contradição”, onde corpos e materiais em diáspora se transformam em busca de sentidos plurais. E NÔT, entre o grotesco e o sublime, encontra momentos dessa pluralidade e assombro coletivo. É o caso da interpretação de Mariana Tembe ao som de Les Noces, o sombrio bailado de Stravinsky sobre um casamento camponês russo marcado por uma profunda violência.

▲ A cenografia ergue-se em grelhas metálicas brancas que se cruzam e dividem o espaço, povoado por corpos mutantes que se entregam a movimentos de transe
Christophe Raynaud de Lage
Essa fisicalidade extrema convoca o fantasma de Xerazade, que, nas Mil e Uma Noites, negoceia a própria sobrevivência face ao rei Shahryar, que assassinava uma noiva a cada noite. É porventura o grande tema de que atravessa NÔT, a violência de género, com performers que se alinham para trocar lençóis ensanguentados, vezes sem conta, enquanto bonecas de avental transformam facas em instrumentos musicais antes de se atacarem mutuamente. O tilintar das facas convive como uma trilha sonora, que vai de Stravinsky a Prince ou Nick Cave (“O Nick Cave é um condenado à morte a aguardar a sua vez”, solta Marlene).
A cenografia, feita de estruturas metálicas, camas, facas, copos e pratos vazios, remete para a ideia de cárcere e poder, mas sem encerrar completamente o espaço. “Há qualquer coisa de rendilhado”, descreve a criadora, “entre a dureza do metal e uma leveza que permite ver através. Não é especificamente uma prisão”. Neste espaço repleto de ambiguidades, o que espera Marlene que este espetáculo provoque?

▲ Marlene Monteiro Freitas nasceu em São Vicente, Cabo Verde. Aos 18 anos mudou-se para Portugal para estudar dança e hoje afirma-se como uma das vozes mais relevantes da criação contemporânea
Stephie Grape
“Uma sacudida”, começa por dizer. “Gostava que provocasse movimento, acho que seria o meu maior desejo. A Xerazade está em confronto com um coração que perpetua uma matança constante. Essa matança é parada com o movimento dela. O espetáculo vem contar as histórias, dividir imagens, dividir essa matança”. Quem tem sangue nas mãos?
O Observador viajou a convite do Centro Cultural de Belém, Culturgest e Teatro Municipal do Porto
observador